- terça-feira, dezembro 12, 2006 -

O Ódio dos Esquecidos


Pede-lhe um beijo antes de ir dormir. Um beijo de boa noite, dois aliás - um em cada bochecha, um para cada face que ele pode ter. Ela já se esqueceu da outra face vincada, aquela face enraivecida. Beija agora a figura que sempre conheceu, aquela figura que lhe inspirava confiança. Afasta-se devagar, um último olhar antes de mergulhar na penumbra do corredor.
"Vais aprender desta vez! Eu avisei-te!"
Sente uma pancada nas costas. Ela olha para trás, mas não vê nada para além do escuro. Pensa em acender a luz: está ali tão perto, bastaria um roçar da mão para acendê-la e verificar se haveria ali alguma coisa ou não. Mas tem medo... Medo que esteja ali de volta, medo de ver. Passo a passo, entra com cautela no quarto e fecha a porta atrás de si, trancando-se num cubo de escuridão.
"Abre essa maldita porta! Se não abres a merda da porta, nem sabes o que te faço!"
Num ímpeto, ela acende a luz. O coração bate com força, a respiração descompassada. "Não, não está aqui. Nunca esteve aqui nada, nunca esteve aqui ninguém...". Continua a sentir receio. Não sabe do quê, não se lembra do quê, apenas sabe que dormir a ajudará a esquecer o medo. Olha-se ao espelho, e vê um inchaço na face. Com a mão, perscruta os seus traços, tentando encontrar aquilo que vê. Não sente nada e pensa consigo própria que estaria provavelmente a alucinar. Tanta coisa tinha acontecido naquele mês, tanta coisa condensada num espaço de tempo tão curto. Despe a camisola, pensando no quão acolhedora era a cama atrás dela... E de relance, vê no espelho uma faixa no estômago ganhar um tom azul arroxeado. Tal visão traz-lhe fragmentos de imagens de desespero que já tinha visto algures no passado: com a aflição, começa a despir-se, com curiosidade e receio daquele espelho. Anda três passos e tropeça no tapete. Atordoada, levanta-se e desaperta o botão das calças.
"Onde raio é que andaste este tempo todo?"
Puxa-as devagar para baixo, sendo cada centímetro incólume um alívio. As calças ficam presas à altura do joelho. Ela insiste, e estas acabam finalmente por ceder, caindo por completo.
"Larga-a! Larga-a! Deixa-a!"
As vozes que ouvia, as vozes! As vozes eram bem reais, as vozes estavam ali, ela conseguia ouvir. Levanta o olhar aos poucos. Ligaduras no pé direito. O joelho esquerdo esfolado. O estômago dorido, e um inchaço na face.
"ABRE A PORRA DA PORTA!"
Subitamente, todas as dores juntaram se numa só e gritaram com ela. Um grito que pouco depois emudeceu, quando o seu corpo caiu inerte no chão.
Um grito mudo que é o ódio dos que esquecem. O ódio que os esquecidos sentem mas já esqueceram. O ódio que os esquecidos não querem esquecer.
O ódio agudo e mudo que os faz lembrar.

- segunda-feira, outubro 23, 2006 -

Os olhos brilham ao vislumbrar-te. O coração bate mais depressa, pulsando vida. Apanhas-me a mão e seguras-la com força, para que não me perca neste caminho novo.
Consigo sentir um tremor na tua mão, algo te incomoda, algo nos impede de percorrer esse novo trilho sem sentir um calafrio na espinha de vez em quando. Olho para trás uma última vez. Nunca mais. Viro costas a um campo de batalha, como uma guerreira que se apercebe que a luta que travava não fazia sentido, deixando de ver os ideais pelos quais guerrilhava como sendo reais. Uma guerreira que, agora longe do campo de batalha, observa a paisagem. Ruinas de cidades imaginárias e sangue derramado em vão - para esquecer ou guardar? Tanto faz. De qualquer forma, o que se esquece desaparece, o que se guarda nos reconditos da memória ganha pó e transforma-se nele.
Seguro a tua mão com mais força ainda: não quero que me largues, não quero que me deixes sozinha a observar a paisagem. Quero que me leves para longe, longe, tão longe... E esse longe está à distância de um passo. Basta um passo para não ver mais essa paisagem, apenas um passo nesse caminho desconhecido para não me relembrar das feições do desespero e da fádiga.
Bastou um passo para perceber que o que achava que era realidade era ilusão, e me mostrares que o que pensava que não existia se podia viver. Sempre um passo em frente ao outro, sem olhar para a linha do horizonte que divide o presente do passado e do futuro. Dessa linha em diante, sou feliz sem procurar sê-lo. Caminho em frente, de mãos dadas contigo, sem nunca largar, palmilhando, de olhos vendados, um percurso de toques de veludo, palavras doces e aromas indescritíveis. Um passo em frente ao outro, sem saber o que virá.
Porque algures no tempo uma vozinha disse-me que o mundo era nosso.

- segunda-feira, julho 17, 2006 -

Afinal, a culpa é do mundo.

Matem-me, tirem-me daqui. Levem-me para lá, onde tudo é fogo frio, para qualquer lado, menos deixarem-me aqui...
"Não preferes ficar?"
Prefiro. Não, não quero, quero sair, abandonar, deixar tudo para trás, tudo..!
"E todos?"
Não. As minhas memórias, ele, não os posso deixar... Mas é melhor. é melhor assim, leva-me, dá-me uma dessas tuas asas rasgadas, já que sou um dos teus...
"Não esperes piedade da minha parte. Não preferes antes, culpá-lo a ele..? Não seria ele que precisa da minha asa..?"
Sim, ele! Ele é que é o culpado, ele é que nos fez isto, ele é que me aperta o pescoço, me tira o ar, me mata, me matou!... Não! Não, eu tenho culpa, sou eu, eu... eu é que nasci.
"E pediste para nascer?"
Não, claro que não. Para quê nascer, se é para conversar contigo, demónio?
"Nem devias ter nascido, tens razão, tu tens a culpa!"
Terei? Pois tenho... e não me consigo livrar dela. Por causa de ti, tu! Tu é que provocaste isto, tu é que me lixaste, me tiraste tudo!
"Eu?! Não tirei nada, querida. TU é que fizete tudo pelas tuas próprias mãos."
Não, não fiz! Tu é que me iludiste, tu é que foste segredar burburinhos aos ouvidos dos outros, ele é que me tramou, a mim, a nós!
"Tens a certeza? E esses burburinhos... vieram de onde, minha doce diaba?"
Cala-te. Cala-te! Jão não te posso ouvir mais! Afinal, de que lado estás?
"Do meu."
Vai-te, demónio, sai!
"Já não precisas de mim?"
Não. Ou... fica. Fica! Leva-me. Leva-me daqui, porque eu tenho culpa... Tens razão, fui eu, leva me contigo, dá-me essa asa, dá-ma...!
"Serás mesmo tu a culpada? Não era ele? Não era eu?"
Sou eu. Acabaste de mo dizer.
"E acreditas em mim?"
Em quem mais poderia acreditar agora? Já acredito em tudo, até em ti.
"Pois... Agora já acreditas em tudo. O que vale é que ainda não acreditas ali no velho barbudo..."
Cala-te. Não acredito nele, e tão pouco em ti! Só acredito que estou agora estou a ouvir-te.
"Então acreditas em mim!"
Foi para isto que vieste? Então vai te embora, já que não me levas.
"Mas acreditas em mim ou não?"
Vai-te!
"Acreditas?"
Larga-me!
"Acreditas??"
Acredito! Agora sai!
"Então acredita que ele é o culpado."
Então não era eu?
"Não ouviste o que eu disse? EU sou o culpado."
Espera. Afinal, quem é?
"Não és tu, acredita em mim. Sou eu. Ou não, afinal é ele. Ou talvez não. Se calhar somos todos nós. Ou todos eles! Quem sabe? Acreditas em mim, não acreditas?"
Pára, criatura, pára! Vieste cá para quê, se não me levas? Leva-me de uma vez por todas! Se não vens cá fazer nada, não me deixes mais confusa do que já estou.
"Mas tu acreditas em mim, as minhas palavras não podem ser confusas! São a mais pura da verdades, se acreditares em mim, não é verdade?"
Vai-te, não acredito em ti, não!
"Pois só te ofereço a verdade: é ele, sou eu também, são todos eles menos tu! Sim, amor... menos tu. Tu, meu doce, só tens a culpa de existir, a culpa de cada passo te ter levado ao que gosto de chamar o presente momento instantâneo do Agora! Aquele Agora que já passou. Talvez, assim, sejas tu... Não, não, filhas, não me olhes assim, tu não tens culpa, não, são eles, sou eu, são eles que não te entendem, tu tens o coração puro, eles é que não entendem... Não entendem a tua culpa! Vem, vem comigo, meu doce, não tens nada aqui, só olhares, vem, vem...! ...então? Não vens?"
Já não sei. Já não sei. Ele tem culpa, tu tens culpa, mas eu não. E nisto tudo, afinal eu sou a maior culpada. Eu e todos eles. Ou se calhar és mesmo só tu.

- domingo, julho 16, 2006 -

Acordo e procuro-te aqui ao meu lado. Estico o braço, percorrendo algumas milhas de lençol, mas apenas encontro um deserto de tecido cor de laranja. Cheiro o ar quente da manhã, procurando por este quarto, um pouco daquela essência na qual me perco tanto tempo...
Sinto de repente o peso da saudade, um desejo enorme de te ter junto a mim, poder continuar a dormir mais um pouco com a consciência de que estavas ali ao meu lado. Embora não o estejas. Estás agora a quilómetros de distância, algures por lados onde a minha vista nunca alcançou... Não posso, portanto, sequer imaginar o que fazes, onde estás, o que te rodeia. Não sei precisar a cor dos grãos de areia que agora pisas, não sei medir a intensidade das ondas que te tocam enquanto te diriges para o mar. Nem tão pouco sei se o fizeste.
No entanto sei, com toda a certeza, que essa distância, aliada à saudade que me abafa, não muda em nada aquele sentimento que ambos sentimos. Sei que, mesmo não conseguindo imaginar os teus passos, nem sentindo o cheiro do teu perfume no teu pescoço, sentes a mesma vontade que eu, de me aninhar nos teus braços e procurar estar segura, procurar aquela paz, da unica maneira que sei, que é estar contigo.
Tu ali, e eu aqui... e o amor é o mesmo nos dois sítios.

- sábado, maio 06, 2006 -

Um sonho. Teria sido tudo um sonho?
Desde aqueles encontros furtivos de noite, teria continuado a sonhar?
Dias felizes. Dias infelizes. Sonhos. Pesadelos.
Acordei. E o sonho fugiu, nada do que parecia ter vivido era real. Tudo se tinha transformado numa vida que outrora sonhara. Tudo se comprimira em simples lembranças, agradáveis e dolorosas.
Porque sim, meu Anjo, continuas a ser quem és... Um anjo. E acordei do sonho que me tinhas dado, um sonho onde nos reunias a nós, onde criaste uma ponte entre esses dois mundos.Mas essa ponte foi quebrada. Por quem, não o sei. Por mim, por um pedaço de tijolo que caiu e provocou a queda dessa ponte..? Apenas sei que não pode haver tal sentimento entre Anjos e mortais, muito embora, cá de baixo, ainda chame por ti, mesmo que de outra forma.
Peço desculpa se não consegui ganhar asas como as tuas... Mas apenas me foi dada força para continuar e seguir em frente, rodeada por outros comuns mortais...

(E pronto... desculpem se este texto não está assim grande coisa, mas foi o que me saiu no meu diário dia 19 de Abril, e precisei de o por aqui. Afinal, tinha que concluir isto de uma maneira ou de outra, mesmo que fosse dando-lhe uma continuação. Mas parece que acabei por encerrar esta história.Só tenho uma coisa a dizer: os textos não acabam aqui! Afinal, a vida continua por entre os comuns mortais...)

- sábado, janeiro 14, 2006 -

Grito, do mais fundo que a minha garganta permite, para que me deixem sair. Puxo a maçaneta, tento rodá-la para escapar, mas foge me por entre os dedos, as mãos escorregam quanto mais força aperto. Arranho a porta com fúria e desgasto as unhas até apenas restarem vestígios destas, presa na ilusão de que conseguiria furar a porta e fugir...
Grito, grito, grito! Mas ninguém me ouve. Ninguém quer ouvir o restolhar dos meus dedos na porta arranhada. Ninguém me devolve a chave que me prende pelo lado de fora...
Choro, mesmo sabendo que ninguém me ouve. Choro, por saber que ninguém me ouve. Porque não lhes iria entregar a vitória numa bandeja assim tão facilmente...
Mordo os lábios para impedir as lágrimas de sair. Se me ouvirem, não quero que me ouçam... Volto de novo para a porta, cravo as unhas nessa maldita porta. Sinto o sabor do sangue na minha boca, mordo com mais força para esquecer a dor nos dedos enquanto arranho. Bato, solto gritos impotentes.
Chamo, baixinho, por ti.
"Meu Anjo..."
A doçura do teu nome acalma-me, sinto dentro de mim uma resposta, algo que me mostra que estás comigo. A tua voz forte...
...do outro lado da porta.
Quanto tempo mais a arranhar esta barreira que nos separa, torná-la em milhões de pequenas lascas para que, pelo menos, me possas agarrar a mão?

- sexta-feira, outubro 07, 2005 -

Rosa amarela


Escondidas por entre um ramo de rosas escarlate, senti as rosas amarelas da traição... Um roçar de lábios, suave como pétalas, fogo fátuo, desespero carnal que te possuiu... Pequenas rosas amarelas dissimuladas num mar de amor. Pequenas rosas traiçoeiras, cheias de remorso e culpa. Os dedos, ensanguentados, ao apertar esses espinhos fortes, a flor da cor do ouro mostrando-me os seu poder...
Tinha-te avisado... Avisei-te que o perfume dessa rosa era um presságio de dor e sofrimento... Mas preferiste render-te aos seus encantos, ignorando os espinhos que agora me atravessam a alma. Choro de dor ao sentir as pontadas, gemo em silêncio, grito, perdida por te ter perdido. Por te ter perdido nesses minutos em que, embriagado pelo desejo, te entregaste à doçura do seu aroma.
Doce veneno, que me persegue, me mata de ciúme. Veneno que te acompanha, ao qual és imune, que transportas até esta ferida que volta a dilacerar-se. E a cada rosa amarela, a cada pétala dourada, assalta-me a imagem desse impulso do qual tiveste consciência demasiado tarde.

- domingo, setembro 04, 2005 -

Saudade...

Adormeci, sem querer, agarrada a um pequeno teu reflexo... Não queria ter adormecido, preferia ter ficado acordada, os olhos presos na tua lembrança... Porque a saudade mata, a saudade persegue-me, como uma corrente arrastando-se aos meus pés. Tento fugir, tento partir, viajar com os meus sentimentos para outro lugar, para um mundo onde a saudade não exista, esse demónio que teima em não me deixar...
Mas não consigo. Não consigo porque não quero... Porque o demónio da saudade também é um ser de duas faces, transformando-se num ente angelical ao tornar-se em mais uma forma de me sentir mais perto de ti, mais um meio, mais um pretexto para te lembrar, para te querer, para te amar, dessa maneira quase doentia, meio obcessiva... Que me faz recordar todos os momentos, todos os toques... O sentir-te ao meu lado, o leve roçar da tua pele na minha, o sussuro de palavras que me tocam a alma, os olhares meigos...
...acordei. Ainda tinha a tua fotografia na palma da minha mão...

- segunda-feira, julho 11, 2005 -

Auto da Barca do Inferno II (texto livre)

(Só um aviso... Este texto não tem nada a ver com o género dos outros textos que é costume por aqui no Wolven Soul. Foi só mesmo para imortalizar estes dois achados que julgava perdidos por entre a desarrumação arrumada do meu quarto...)

(chega um homem com má aparência, a roupa aos farrapos, os olhos meio revirados, à Barca do Inferno.)
Traficante: Está aí alguém dentro desse barco em chamas?
Diabo: Ai, sejas bem vindo, meu caro vendedor de desejos! Tens algum pacotinho para mim?
Traficante: Só se pagares. Esta ervinha terrestre é da boa. No caminho até cá não vi nada que se parecesse com ela.
Diabo: Ofereço-te uma viagem em troca desse saquinho que tens escondido no sapato.
Traficante: Mas... Mas quem és tu? Não és aquele que nos leva a todos para um lugar onde nem o cheiro da doce erva faz efeito?
Diabo: Sou, sim. Por isso te peço para provar um pouco disso. Parece-me bom.
Traficante (atrapalhado): Mas... Eu não posso ir nesse barco, então. Sem o meu mundo, não irei. Sem os sonhos que tenho de dia, não vou. Quero ir a um sítio onde possa partilhar os prazeres da coca com os outros.
Diabo: Ainda esperas entrar naquela além?
Traficante: Talvez vá. Mas nesta não entro. Não sem garantias de que poderei voltar a sentir aquela pica quando a coca faz efeito.
Diabo: Experimenta. Mas olha que não há nada melhor do que um bom cruzeiro. E mais! Essa barca de pesca ao lado não te servirá, se o que pretendes é partilhar esse êxtase com os outros.
Traficante: Porquê?
Diabo: São poucos os que lá entram. E desses poucos, são todos puros. Nunca provaram nada disso.
Traficante: Não há problema. Também tenho pastilhas para os fracotes.

(dirige-se à barca do Anjo)
Traficante: Ó Anjo, minha doce heroína!
Anjo: Heroína?! Também tencionas contaminar os de cá?
Traficante: Contaminar? Eu venho espalhar a felicidade, os momentos de êxtase, os prazeres simples que se escondem numa seringa!
Anjo: Os teus prazeres, guarda-los para ti! Nesta barca, não entrarás!
Traficante (segredando ao ouvido do Anjo): As primeiras doses são por minha conta...
Anjo: Basta! Seu inconsciente! Não percebes que essa folia te consome?
Traficante: Claro que consome... Todas as minhas dificuldades... Todos os meus receios... Queres?
Anjo: Afasta-te de mim! Tentações do pecado, leva-as ao Diabo!
Traficante: Já as levei. Mas ele quer levar-me para um sitio onde nada faz efeito.
Anjo: Pobre criatura... E o que é isso? Apenas uma seringa?
Traficante: Tenho mais nos bolsos de trás e nos sapatos... Pó puro...
Anjo: Afasta-te! Pecador! Blasfémia! Filho do Diabo... tens mesmo a certeza que isso é bom? Sê discreto e esconde-te ali debaixo da rede.

(Texto mais estúpido de sempre.)

Auto da Barca do Inferno I (episódio do Fidalgo)

Voltando à mansão do Fidalgo com a pesada cadeira às costas, o Pajem não escondia um sorriso malicioso nos lábios. Cantarolava baixinho, não se importando com o peso que carregava. Outro pajem observava apático aquele cenário: nunca um pajem tinha rido com tanta vontade!
- De que rides vós? – perguntou, após o Pajem se ter acalmado.
O Pajem não respondeu. Pelo contrário, assentou bem a cadeira no chão e sentou-se. Ricanava, lembrando-se do que se tinha passado no cais.
- Porque tardastes tanto?
Pera onde fostes? – insistiu o pajem.
- Nosso fidalgo pera a ilha perdida remará!
Servir Satanás irá
Pera o mundo do fogo ardente.
- De que rides, que pensa tua mente
Se nosso Fidalgo tem tão triste fim?
- Sua mulher, de tristura não perece!
- Não zombais, ela não merece!
Nom t’entendo, de que rides,
Senão da tristura de nosso Fidalgo?
- De sua má sorte, com certeza!
Não acreditais também que a Senhora morre por ele, pois não?
Vos lembrais daquele cavaleiro que cá passou?
No seu ombro a Senhora chorou!
- Porque escarneceis tanto de nosso Fidalgo?
- Mui escarneceu ele de nós.
Por agora, remará, lembrando-se assim dos males que causou.
- Que cousas me contais!
- E vós não sabeis de tudo!
- Que mais encontrais para zombar?
- De nosso Fidalgo que foi na naviarra de Lúcifer embarcar!
- E sua cadeira, porque lá não ficou?
- O Arrais não a aceitou.
E nosso Fidalgo ainda queria
Algo que defendesse sua senhoria!
Julgava que por fidalgo de solar ser
Dos seus pecados o iriam absolver!
- E ainda ricanais?
- Desde que parti daquele cais!
Nosso Fidalgo cometeu tanta travessura
Que o seu lugar por aqueles lados perdura!
Inda ele a entrar se recusou
Mas para o batel infernal o Anjo o enviou!
Ad vitam aeternam* por lá ficará
A esta hora... no Inferno está.

*Do Latim: para a vida eterna, para todo o sempre.

(Nas minhas arrumações de quarto encontrei este texto e o outro... Os dois referentes ao Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Podem não estar lá muito bons, mas na altura – há um ano! – deu-me um gozo enorme escrever estes textos...)